No princípio é um vírus. Um “algo” sem núcleo celular próprio, parecido com uma proteína, que não fala nem se mexe e muitos nem sabem se dá para classificar como ser vivo. Para se reproduzir, ou se replicar, para usar um termo da linguagem científica, ele precisa se misturar a células de outro organismo, este indiscutivelmente vivo. Por isso, recebe o título de “parasita obrigatório”. Uma ameaça tão pequena, tão microscópica, que se espalha invisível pelas superfícies, sendo transportada por mãos e gotículas de saliva até encontrar um corpo onde consiga se multiplicar com mais facilidade.
Esse é o roteiro seguido por todos os agentes infecciosos da classe do novo coronavírus. É assim com a Influeza, família do H1N1, e todos os outros causadores da gripe comum e do resfriado. Diferente desses, porém, o Sars-Cov-2 tem uma capacidade de transmissão muito alta, que pode chegar ao dobro das demais, e, em uma parcela dos casos, apresenta uma virulência elevada, agravando o quadro clínico do paciente numa velocidade que intriga a ciência e desafia o sistema de saúde.
As complicações provocadas pela Covid-19 ainda são investigadas por pesquisadores e pelos médicos na linha de frente. Até agora, sabe-se que a doença é capaz de provocar inflamações no corpo todo, que comprometem o funcionamento dos pulmões, reduzem a oxigenação do sangue e causam microtrombos no sistema cardiovascular. Esse processo aumenta o risco de uma isquemia que pode levar a uma parada cardíaca, além de deixar sequelas que devem ser tratadas depois da cura. Outras consequências, identificadas em estudos mais preliminares, envolvem possíveis alterações em neurônios.
Entender as marcas que a infecção pode deixar no organismo ajuda a desvendar o que há por trás do crescimento acelerado do número de mortes e contribui para a descoberta de medicações e tratamentos mais eficazes. Enquanto as pesquisas avançam nesse sentido, profissionais que atuam na ponta já enxergam a doença como “multissistêmica”. Isso significa que ela ataca diferentes sistemas do corpo humano, o que é incomum em outras infecções respiratórias.
“Se você tiver uma pneumonia bacteriana ou de outros tipos de vírus, em geral, ela afeta o sistema respiratório, costuma ter um foco específico. No caso da Covid-19, temos visto uma coisa bem comum. Ela pode até ter uma predileção pelo pulmão, mas costuma acometer vários sistemas em conjunto. Os pacientes que estou acompanhando na UTI, muitas vezes, estão com os sistemas respiratório, renal e cardiovascular comprometidos. Essa é uma das características que têm deixado a gente bastante intrigado”, observa o cardiologista e clínico-geral Humberto Caldas, um dos chefes da Emergência do Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco Professor Luiz Tavares (Procape).
Cadeia inflamatória
Descrita (e sentida) como um sintoma direto da doença, a inflamação é uma reação do organismo contra o invasor que se espalha pelas células. É, portanto, um mecanismo de defesa do próprio corpo quando se ativa o sistema imunológico para eliminar ou expulsar o agente infeccioso. Por isso que, nas gripes, temos dores de garganta, tosse e coriza, como resultados das inflamações das partes atingidas pelo parasita.
Na forma grave da Covid-19, o processo inflamatório ganha uma dimensão maior. Ao entrar pelas vias dos olhos, boca e nariz, o coronavírus afeta, primeiro, o sistema respiratório. A maioria dos pacientes, de 80% a 90%, não terá grandes complicações no funcionamento dos pulmões, mas outra parte dos infectados apresenta inflamação intensa nos pulmões. “Essa intensidade vai variar de indivíduo para indivíduo. Quem tem doenças pulmonares, principalmente enfisema e doença pulmonar obstrutiva crônica, tende a ter maior. Mas no pulmão, a gente não sabe por que algumas pessoas desenvolvem a forma grave e outras, não”, comenta o pneumologista, alergista e imunologista Ângelo Rizzo, chefe do Serviço de Pneumologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE).
Junto às inflamações, começam a se formar coágulos sanguíneos, que comprometem os pulmões. “Esses coágulos entopem pequenos vasos e, às vezes, grandes vasos podem ser comprometidos, levando à embolia pulmonar”, detalha Rizzo, explicando a causa para a sensação de falta de ar, sintoma comum na Covid-19. “Essa falta de ar está ligada à inundação dos alveólos, pequenas bolhas do pulmão onde ocorrem as trocas gasosas, por um líquido inflamatório. Além disso, os microcoágulos entopem a circulação pulmonar”, afirma. Apesar de todos esses danos, que podem causar cicatrizes nos pulmões, a probabilidade de desenvolver problemas crônicos após a cura é baixa.
Do sangue ao coração
A alta coagulabilidade do sangue provocada pela resposta inflamatória à infecção não se restringe aos pulmões. O sistema cardiovascular também sobre com os coágulos, que causam microtrombos nos vasos sanguíneos e podem chegar ao coração. Por esse motivo, pessoas que sofrem com problemas cardíacos têm mais risco de desenvolver a forma grave da doença. Em todo o mundo, registram-se relatos de pacientes, como o ator canadense Nick Cordero, que tiveram membros amputados por causa das obstruções.
“O trombo é formado por vários componentes sanguíneos. São glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e tecido fibrótico também, com proteínas como fibrina e colágeno. Aquilo vai aumentando a viscosidade do sangue. As células estão todas inflamadas, as paredes dos vasos estão inflamados. E isso favorece que as células comecem a se juntar umas às outras, o sangue fica mais viscoso, e os trombos impedem a passagem do sangue. Isso acontece também nos rins e no coração”, alerta o cardiologista Humberto Caldas.
Quando chegam ao músculo cardíaco, as microtromboses prejudicam a circulação sanguínea, podendo evoluir para uma isquemia, quando partes do órgão deixam de ser irrigados e param de bombear. “No caso da Covid, a gente não costuma chamar de infarto, mas de injúria miocárdica. Porque o processo é mais global, afeta o órgão como um todo. No infarto, é algo localizado”, esclarece Caldas. Para evitar que chegue a esse quadro, foi incluído no tratamento desses pacientes o uso de medicamentos anticoagulantes, que buscam diminuir ou retardar as coagulações e os danos causados por elas nos diversos órgãos do corpo.
As razões que levam o infectado a apresentar essas complicações não foram completamente esclarecidas. Mesmo quem não tem doença preexistente pode adquirir tromboses ao longo da evolução clínica. Nesses casos, após a cura, será necessário um acompanhamento por um cardiologista. “É um risco que todo mundo corre, até porque essas pré-disposições são silenciosas, nem sempre a pessoa sabe que tem. Aí fica o alerta. Quem sabe que tem esses problemas deve ter cuidado redobrado. O corpo todo ficando inflamado pode deixar determinada área mais sensível. E depois da recuperação, é bom fazer uma nova avaliação para ver se o coração foi afetado e teve alguma sequela”, recomenda Humberto Caldas.
Neurônios e virulência
Aos poucos, a ciência descobre os efeitos que podem ser gerados pelo novo coronavírus. Na busca por compreender o comportamento desse agente infeccioso, já se sabe que o microrganismo também é capaz de atingir o sistema nervoso. Nesta semana, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) divulgou um estudo que confirma a infecção de neurônios pelo Sars-Cov-2, que se conecta a uma proteína presente em células nervosas.
Isso não significa, porém, que a Covid-19 afeta o cérebro. A pesquisa, realizada no Instituto de Biologia da universidade, identificou apenas a interação do parasita com os neurônios, mas não chegou a uma conclusão sobre como o funcionamento dessas células é alterado pelo invasor. De acordo com o coordenador do estudo, professor Daniel Martins-de-Souza, não se sabe ainda se o vírus consegue ultrapassar a estrutura do cérebro que protege o órgão de substâncias tóxicas vindas da circulação sanguínea. E, mesmo que consiga, falta descobrir o impacto que ele pode gerar.
Diante de todas essas constatações, resta a dúvida sobre o quanto a capacidade do vírus de se multiplicar pode influir na evolução da doença dentro do corpo. O infectologista Filipe Prohaska, chefe da Triagem de Doenças Infecciosas do Hospital Oswaldo Cruz (Huoc), diz que uma característica não está atrelada à outra. “A taxa de replicação é a velocidade com que o vírus se desenvolve. A [gravidade da] infecção tem a ver com a virulência que o vírus tem. Aparentemente, o novo coronavírus tem uma virulência mais alta”, explica. “Você combate o vírus diminuindo a capacidade de replicação ou de virulência”.
Na última quarta-feira (29), um estudo clínico feito nos Estados Unidos sinalizou para a eficácia do medicamento Remdesivir, antiviral que tem sido usado para reduzir a capacidade de replicação do parasita. “Parece que tem um impacto importante, mas ainda é muito precoce ter essa resposta. E com relação à virulência, o que impacta seria uma vacina. Como acontece em outras gripes, a pessoa que toma [a imunização] teria sintomas bem mais leves do que deveriam ser”, lembra.
Por: Artur Ferraz