Por dois anos e três meses, sem trégua, o aposentado Luiz Gonzaga Gomes diz ter sentido uma queimação intensa em todo o corpo. Passou seis meses sem andar, locomovendo-se sobre uma cadeira de rodas. Mais tarde, um laudo médico apontou um diagnóstico: polineuropatia, um distúrbio que abala o funcionamento dos nervos periféricos, possivelmente causado por uma intoxicação por diclorodifeniltricloroetano, o DDT. Gomes afirma que a contaminação é herança dos tempos em que trabalhava como mata-mosquito, apelido dado aos profissionais que, nos rincões do Brasil, combatiam endemias como malária e leishmaniose pela extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), hoje Fundação Nacional da Saúde (Funasa).
— Trabalhei por oito anos, de norte a sul de Rondônia, sem nenhum equipamento de segurança. A gente misturava o pó (DDT) com a água antes de colocar na bomba que ia nas costas e borrifar nas casas com uma mangueira. Aquilo era um talco, voava e formava um poeirão. O contato com o veneno era total, diz Gomes.
Em abril passado, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu mais de 11 mil cargos “obsoletos” do Ministério da Saúde — mais de cinco mil deles agentes de saúde e guardas de endemias. São profissionais que, como Gomes, combatem a disseminação de doenças infecciosas transmitidas por mosquitos. Os cargos deixarão de existir no âmbito federal assim que seus atuais ocupantes se aposentarem. Enquanto o governo acabou com esses postos, servidores que tiveram contato com o DDT entre os anos 1970 e 1990 brigam na Justiça para conseguir algum tipo de indenização por doenças que dizem estar associadas ao inseticida. A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef) estima serem milhares de intoxicados. O Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal afirmam não ter um sistema de busca de processos que permita aferir o total de servidores que entraram na Justiça contra o governo em decorrência da intoxicação por DDT.
A literatura médica mostra que a intoxicação por DDT é pouco absorvido pela pele humana. A intoxicação se dá, em geral, por vias respiratórias, ao inalá-lo, ou digestivas, ao comer alimentos contaminados. A Funasa defende-se citando estudo realizado a pedido da própria fundação em 2001. Com base em exames clínicos, neurológicos e laboratoriais de funcionários submetidos ao produto, o levantamento concluiu não haver nexo de causalidade entre os sintomas e a “alegada” contaminação. As pessoas que são intoxicadas, diz a Funasa, ingerem o DDT por via oral.
— Existe farta literatura científica que associa a exposição ao DDT ao aumento de alguns cânceres, distúrbios reprodutivos, doença neurológicas, alterações imunológicas e do sistema endócrino. Apesar de não haver consenso científico, a balança pesa mais para o lado da hipótese de que o DDT é danoso à saúde — afirma o doutor em Saúde Pública Armando Meyer, professor da UFRJ, que há 20 anos estuda os efeitos dos agrotóxicos.
A descoberta do DDT revolucionou a luta contra a malária em todo mundo. Rendeu a seu criador, o suíço Paul Müller, o Prêmio Nobel de Medicina, mas teve graves efeitos colaterais — a princípio para o meio ambiente. Mais tarde, descobriu-se que, em grandes quantidades, o inseticida atua sobre o sistema nervoso central e pode causar alterações de comportamento, distúrbios sensoriais e do equilíbrio, além de depressão dos centros vitais, em especial da respiração. O primeiro país do mundo a banir o DDT foi a Suécia, em 1970. O Brasil proibiu sua comercialização, uso e distribuição para aplicação na agropecuária em todo território nacional 15 anos mais tarde. A utilização do inseticida em campanhas de saúde pública para combater a malária e a leishmaniose, entretanto, continuou permitida. O último lote adquirido pelo governo brasileiro foi em 1991.
Há duas décadas, o advogado Wolmy Barbosa de Freitas, de 60 anos, atende intoxicados por DDT. Ele diz que, nesse período, entrou com pelo menos 500 processos contra o governo federal em Goiás, Minas Gerais, Tocantins, Rondônia, Acre e Pará. Segundo ele, muitos de seus clientes já morreram. Freitas diz que conseguiu sentenças favoráveis em 20 ou 30 processos. Acórdãos dos tribunais superiores fixaram o valor de R$ 3 mil por ano de exposição ao DDT sem equipamento de segurança. Uma sentença de 2013 de Ji-Paraná, Rondônia, determinou o pagamento de indenização entre R$ 100 e R$ 200 mil aos servidores.
— Chamo o DDT de Aids em pó. Ele desafia a ciência, ataca todos os órgãos vitais e não deixa vestígio para ser investigado. A maioria dos médicos não atesta com certeza, não sei se por desconhecimento técnico ou medo de retaliação. Estou numa estafa total, tentando acudir esse povo, diz Freitas, com a voz embargada.
Via PE Notícias