Por 18 milhões de votos, Lula e Bolsonaro travam guerra sobre as obras de transposição do rio São Francisco

Com o acirramento da pré-campanha ao Planalto e da busca por votos no Nordeste, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT) travam uma guerra de narrativas pela paternidade da transposição do Rio São Francisco, inclusive com uso de números distorcidos ou incompletos. Ex-ministro da Integração Nacional no governo do petista, Ciro Gomes (PDT) também tem procurado assumir o crédito pelas obras, cuja previsão é beneficiar 390 municípios de quatro estados que, somados, têm 18 milhões de eleitores.

As obras da transposição foram iniciadas em 2008 com um orçamento de R$ 4,5 bilhões, mas passaram por atrasos e modificações ao longo dos anos. Inicialmente com mais de 720 quilômetros de canais, o projeto foi reduzido, segundo o governo federal, para 477 quilômetros após uma renegociação de contratos na gestão Dilma Rousseff (PT). A transposição se divide em dois “eixos estruturantes”: o eixo Norte, que cruza Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, e o eixo Leste, que avança até o agreste de Pernambuco.

Na última semana, Bolsonaro visitou trechos do projeto de transposição nos quatro estados e declarou, em provocação a Lula, que a obra “não ia sair nunca” no governo petista. Em resposta, o ex-presidente compartilhou um gráfico no qual alega que “Lula e Dilma fizeram 88% das obras” e que Bolsonaro “só apareceu para tirar a foto” em inaugurações. O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), pasta hoje a cargo de Rogério Marinho, por sua vez, afirma que o governo Bolsonaro pagou quase 25% da obra e que, até 2018, o eixo Norte encontrava-se apenas 30% em funcionamento, sugerindo que o atual presidente teve participação equivalente à de seus antecessores.


Os números usados por Lula e Bolsonaro representam recortes inflados ou imprecisos do avanço das obras em seus governos. Em maio de 2010, no fim da gestão do petista, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou, em relatórios de vistoria, que os eixos Norte e Leste tinham 39% de execução. Já em abril de 2016, pouco antes do impeachment de Dilma, relatório do governo federal para o Programa de Integração do Rio São Francisco (Pisf) apontou que a execução física havia avançado cerca de 47%. No total, a execução em governos petistas foi de 86%. O percentual foi calculado em relação aos 477 quilômetros dos eixos estruturantes e desconsidera a redução do projeto original — o percentual alardeado por Lula, portanto, seria menor caso a conta levasse em consideração o projeto defendido por seu próprio governo.

De acordo com os relatórios do Pisf, divulgados anualmente, a abertura dos canais dos eixos Norte e Leste já estava 95% concluída antes do início do governo Bolsonaro. O atual presidente, no entanto, passou a calcular o projeto de forma ampliada, com mais três ramais cuja construção chegou a constar nos estudos iniciais da transposição. O novo cálculo faz com que a obra chegue a quase 700 quilômetros, diluindo o percentual construído nos governos do PT. A maior parte das novas obras, porém, encontra-se em estágios preliminares.

O único dos três novos canais já inaugurados é o Ramal do Agreste, iniciado ainda no governo de Michel Temer (MDB). A obra foi entregue em outubro do ano passado por Bolsonaro, que afirma ter realizado mais de 90% da construção, cerca de 70 quilômetros, a um custo de R$ 1,6 bilhão. A chegada da água aos 68 municípios beneficiados, no entanto, depende ainda da finalização da Adutora do Agreste, obra tocada pelo governo de Pernambuco com recursos do governo federal. Houve atraso nos repasses federais, segundo o Executivo pernambucano, e ainda há cerca de R$ 60 milhões a pagar. A previsão de entrega é julho deste ano.

Com a construção do ramal e os repasses para a adutora, o governo federal diz que o valor total pago nas obras de transposição chegou a R$ 14,6 bilhões, dos quais R$ 3,5 bilhões teriam sido investidos desde 2019. O cálculo, porém, leva em conta obras de barragens e outros canais associados. Em relação à abertura dos eixos Norte e Leste, usada como parâmetro para o avanço da transposição, cerca de 10% foi pago na atual gestão.

Bolsonaro autorizou ainda, no segundo semestre de 2021, o início das obras do ramal do Apodi, que chega ao Rio Grande do Norte e custará R$ 1,7 bilhão. Há também uma licitação em andamento para construir o ramal do Salgado, no Ceará.

Na visita ao Nordeste, Bolsonaro fez dezenas de publicações nas redes sociais nas quais disse ter feito “em 3 anos (de governo) o que não foi feito em 16 anos”. Parte do itinerário do presidente, contudo, consistiu em atos simbólicos ou reinaugurações. Em Pernambuco, por exemplo, ele acionou a estação de bombeamento EBI-3, que havia sido inaugurada em agosto de 2018 por Temer, e depois desligada por conta de um vazamento. No Rio Grande do Norte, apesar de o governo federal ter anunciado a chegada das águas do São Francisco ao estado, o volume do rio não chegou a tempo da visita do presidente, na quarta-feira.

Ciro: ‘Montei e licenciei’

Além de Bolsonaro, ministros com pretensões eleitorais no Nordeste também vêm querendo surfar nas obras do São Francisco. Interessados na eleição ao Senado no Rio Grande do Norte, os titulares das pastas do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e das Comunicações, Fábio Faria, participaram da turnê.

Ciro, por sua vez, tem afirmado que o projeto básico da transposição foi elaborado em seu período como ministro no governo Lula. O projeto foi entregue em 2007 e as obras iniciadas no ano seguinte. Ciro deixou a pasta no início de 2006 para concorrer a deputado federal. Antes disso, como ministro, ele participou de debates na tentativa de sustentar pontos do projeto, contestado à época por conta de incertezas sobre o impacto ambiental e sobre a destinação prioritária da água para uso humano.

— Todo mundo sabe que a transposição do São Francisco foi uma obra do (ex-presidente) Lula. Eu montei, licenciei e iniciei o projeto das tomadas das águas do Eixo Norte e do Eixo Leste. O resto é manipulação e mentira, disse Ciro em evento no Ceará na última semana.

O Globo

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